Ainda há juízes em Brasília?
Triste do povo que precisa de juízes, porque se tornam mais raros aqueles que honram o nome e a função. Povos indígenas se encontram nessa sinuca de bico, encurralados num canto da mesa pelo próprio Supremo Tribunal Federal (STF).
Os herdeiros dos primeiros habitantes da terra que se tornaria o Brasil depositavam ali, na corte, a esperança de ver garantias constitucionais respaldadas. Afinal, o STF já havia decidido por 9 votos a 2 que a tese do marco temporal afronta a Constituição de 1988.
Marco temporal é a tese esdrúxula de que indígenas só teriam direito às terras em que viviam em 5 de outubro de 1988, quando se promulgou a Constituição. Raciocinando por absurdo, se delas tivessem sido expulsos a tiros dias antes, não fariam mais jus ao usufruto.
O artigo 231 da carta, porém, não pode ser mais claro: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
Oportunistas e rábulas talvez se fixem no tempo presente do indicativo do verbo “ocupam”. Mas só carradas de má fé ou de interesses escusos admitiriam desconsiderar o advérbio modulador que o antecede, “tradicionalmente”, como critério para reconhecimento oficial de terras indígenas (TI).
Compete à União unicamente delimitar o território utilizado de modo contínuo por um povo, e não constatar se seus integrantes estavam de posse dele num dia arbitrariamente fixado por não índios. São direitos originários, que precedem a própria existência da colônia e do país a que se viram conscritos.
Não houve surpresa, portanto, quando o STF votou pela inconstitucionalidade do marco temporal. Pouco demoraria, porém, para o Congresso dar o troco.
Dominado por ruralistas, o parlamento não se envergonha de atropelar direitos indígenas para alcançar dois objetivos: estancar a redução do estoque de terras disponíveis para grilagem e compra a preços vis, de um lado, e arrostar o Supremo por seu ativismo, dado como usurpador de prerrogativas do Legislativo.
Deputados e senadores dobraram a aposta no conflito aprovando a lei 14.701, na qual se institui o marco temporal. Já prevendo a derrubada da norma no STF, por inconstitucional, propôs-se no Senado emenda à Constituição (PEC 48) para nela entronizar a aberração, em aberto desafio, ou desaforo, a ministros do Supremo.
Encolhendo-se diante do Congresso belicoso, o STF, por iniciativa do ministro Gilmar Mendes, sustou todos os processos judiciais relacionados com o marco temporal em outras instâncias e abriu espaço para um grupo de trabalho promover conciliação entre as partes.
Em português claro: o STF forçou os povos indígenas a entrar numa negociação em que só eles têm algo a perder. Aceitando participar, terão de fazer alguma concessão no gozo de direitos que deveriam ser inegociáveis, pela Constituição.
Em português ainda mais claro: o Supremo piscou. Afinou. Sinalizou para os congressistas com sangue nos olhos (se não nas mãos) que poderão deitar e rolar caso povos indígenas mostrem, como seria de esperar, qualquer intransigência.
Conciliação nos olhos dos outros é refresco. O STF se converteu numa usina de insegurança jurídica, decidindo uma coisa hoje e em seguida o seu contrário, conforme os ventos da conveniência política. O padrão se repete: prisão de Lula, revisão da vida toda no INSS, Lava Jato… e, agora, marco temporal.
Por essas e outras cabe questionar: ainda há juízes em Brasília, no sentido próprio da palavra, ou apenas êmulos e comensais do empreendedor Gilmar Mendes?
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Informação
Folha de São Paulo