Aliado de Putin com passado obscuro é peça-chave em polêmica sobre gênero de boxeadoras
Pivôs de um acalorado debate sobre gênero nas Olimpíadas e engrenagens da guerra cultural entre progressistas e conservadores, as boxeadoras Imane Khelif, da Argélia, e Liu Yu-ting, de Taiwan, também são involuntariamente marionetes de uma disputa política que se desenrola há anos entre o COI (Comitê Olímpico Internacional) e a entidade que comanda o boxe amador no mundo, hoje chamada IBA (Associação Internacional de Boxe), ex-Aiba.
As diferenças entre o COI e a IBA, que parecem atingir seu auge em Paris, ganharam força com a ascensão de Umar Kremlev ao comando da associação de boxe, no final de 2020. Trata-se de um aliado de Vladimir Putin com dinheiro e poder crescentes no Kremlin e um histórico obscuro e enrolado.
Foi a IBA de Kremlev que impediu Khelif e Liu de participarem do Mundial amador de Nova Déli no ano passado alegando que elas não passaram nos testes de elegibilidade para a disputa feminina –sem esclarecer exatamente quais testes foram esses. A associação informou que as atletas “não foram submetidas a um exame de testosterona, mas a um teste separado e reconhecido, cujos detalhes permanecem confidenciais”.
Ainda assim, a informação incendiou o debate quando a italiana Angela Carini abandonou o combate com Khelif aos 46 segundos.
O COI ignorou a decisão da IBA e diz não ter dúvidas de que Khelif e Liu são mulheres. O comitê leva em conta a declaração de gênero que consta no passaporte das duas lutadoras, que já tinham disputado o torneio de boxe nas Olimpíadas de Tóquio, em 2021 –a argelina terminou em quinto lugar e a taiwanesa, em nono.
A guerra verbal entre os principais dirigentes das entidades subiu alguns tons, com Kremlev chamando o presidente do COI, o alemão Thomas Bach, de “pária”, “sodomita” e conclamando atletas a se insurgirem contra o cartola.
Bach rechaçou o “discurso de ódio” contra as boxeadoras, afirmou que Kremlev promove uma campanha difamatória contra o COI e os Jogos. O comitê ainda produziu um dossiê sobre o chefe da IBA.
Segundo um relatório do COI revelado pelo jornal italiano La Repubblica –que converge com informações de uma reportagem do site investigativo russo Proekt–, Kremlev é uma criação.
Conforme essa versão, o cartola, que se declara russo, é na verdade do Tajiquistão e seu sobrenome de batismo é Lutfulloyev. Teria alterado nome e nacionalidade para se aproximar do Kremlin. Segundo La Repubblica e Proekt, Kremlev/Lutfulloyev tem duas condenações: uma por extorsão, em 2004, outra por agressão, em 2007.
A reportagem procurou a IBA com questões a Kremlev, mas não houve resposta até a publicação deste texto.
Tanto La Repubblica quanto o Proekt contam que Kremlev ascendeu nos círculos de poder do Kremlin por ser amigo de Alexei Rubezhnoi, chefe do Serviço de Segurança Presidencial da Rússia e um dos principais guarda-costas de Putin, e que ambos se tornaram empresários milionários com controle sobre uma loteria nacional e empresas de apostas —tudo com concessões e bênçãos do regime.
Em 2016, Rubezhnoi e Kremlev assumiram a Federação Russa de Boxe, uma prévia para em seguida o segundo alcançar o poder na IBA em meio a uma crise de corrupção e má gestão que se desenrolou por anos e tornou insustentável a parceria com o COI, como se verá adiante.
Em junho passado, Kremlev integrou a comitiva de Putin durante uma visita oficial do presidente russo à China. “A Rússia e a China estão mostrando a todos os países que é preciso se unir, ter valores familiares tradicionais e manter os valores humanos”, disse o presidente da IBA numa entrevista à TV estatal chinesa CGTN.
Kremlev é ativo nas redes sociais (tem 3,7 milhões de seguidores no Instagram), onde publica vídeos e fotos de suas andanças pelo mundo, sendo recebido por autoridades e interagindo com celebridades, a quem costuma regalar com a miniatura de um ringue de boxe. Em novembro de 2023, no Vaticano, o papa Francisco recebeu o mimo das mãos do presidente da associação.
Também no ano passado, Kremlev esteve no Brasil para participar do Fórum Continental da Confederação Americana de Boxe, em Brasília, e aproveitou para visitar o centro de treinamento da seleção brasileira de boxe, em São Paulo, e fazer elogios à escola brasileira do esporte.
No evento em Brasília, fez acusações contra integrantes do COI que suscitaram uma nota do Comitê Olímpico, que repudiou a “incitação ao ódio e linguagem depreciativa contra indivíduos que trabalham para o COI” e a denúncia de que membros do comitê estariam “encobrindo crimes”.
“Além disso, pedir que um indivíduo anteriormente ligado ao COI seja ‘baleado’ é uma linguagem que não tem lugar no esporte ou em qualquer debate civilizado normal”, afirmou o comitê presidido por Bach.
O que se vê em Paris, portanto, é mais um capítulo de uma guerra barra-pesada, que envolve outros cartolas com histórico idem.
Quando ainda se chamava Aiba, a entidade que controla o boxe amador era a responsável por organizar o torneio olímpico do esporte. Durante a Rio-2016, estourou um escândalo, revelado pelo jornal britânico The Guardian, de que desde pelo menos os Jogos de Londres-2012 resultados do torneio olímpico de boxe eram manipulados.
O presidente da Aiba era o taiwanês Wu Ching-kuo, afastado em 2017 após denúncias de corrupção e má gestão. Ele foi sucedido pelo uzbeque Gafur Rakhimov, acusado de crimes pelo governo americano, o que sempre refutou. Ao anunciar, em 2012, sanções contra Rakhimov, o Departamento do Tesouro dos EUA escreveu então que ele era “um dos líderes do crime organizado uzbeque” e que “operou grandes sindicatos internacionais de drogas envolvendo o tráfico de heroína”.
Ainda assim, Rakhimov assumiu a Aiba em 2018, aumentando a crise com o COI. Em 2019, ele renunciou, e o comitê afastou temporariamente a Aiba do movimento olímpico, decisão referendada em 2023. Foi a primeira vez desde a fundação do COI, em 1894, que um órgão dirigente foi expulso.
Kremlev assume a Aiba, em dezembro de 2020, e se oferece para pagar do seu próprio bolso US$ 16 milhões (R$ 90,4 milhões, na cotação atual) de dívidas da entidade, conforme relatório do COI revelado por La Repubblica, mas a fonte do dinheiro, diz o documento, não é “rastreável” nem “transparente”.
Assim como já ocorrera nos Jogos de Tóquio em 2021, para a edição atual o próprio COI montou um órgão provisório para organizar os qualificatórios e o torneio olímpico, chamado Paris 2024 Boxing Unit (PBU). Tem conclamado as federações nacionais a criarem uma nova entidade global para cuidar do esporte. Embora tenha negado que isso vá ocorrer já na próxima edição, a atual crise mostra que o boxe corre risco de ficar de fora dos Jogos de Los Angeles-2028.
O contexto geopolítico só amplia a guerra entre COI e IBA. O comitê excluiu a Rússia dos Jogos de Paris como retaliação pela invasão da Ucrânia, causando revolta em Putin e Kremlev. Nos bastidores, dirigentes do COI associam o episódio das boxeadoras a uma cruzada russa para manchar a credibilidade do comitê –o que a IBA nega.
Os dois lados da disputa têm escamoteado as questões científicas do debate, o que só ressalta os seus contornos políticos. Enquanto diz que Imane Khelf e Liu Yu-ting têm características biológicas que tornam desigual sua disputa entre as mulheres, a IBA não conseguiu esclarecer em quais testes se baseou para exclui-las do Mundial do ano passado.
O COI –que deixou de realizar testes de gênero nos Jogos– também é criticado por ressaltar a questão cultural/inclusiva e ser errático quanto aos dados biológicos concretos. Chegou a informar, na área reservada à mídia de Paris-2024, que Khelif foi desqualificada do Mundial em 2023 por “níveis elevados de testosterona que não atendiam aos critérios de elegibilidade” –ou seja, reproduzindo comunicado da inimiga IBA–, mas depois retirou a informação.
Num briefing à imprensa, Bach afirmou que o episódio de Khelif não configurava “um caso de DSD [DDS em português, distúrbio de desenvolvimento sexual, que pode aumentar o nível de testosterona em mulheres], trata-se de uma mulher participando de uma competição feminina”.
Em seguida o COI corrigiu a afirmação, informando que o dirigente quis dizer que não era um caso de transgênero –sugerindo que pode, sim, ser um caso de DDS.
“A sugestão de que poderíamos optar por organizar a categoria de forma diferente –com base na identidade de gênero autodeclarada, por exemplo– ou que poderíamos fazer exceções cada vez mais numerosas em prol da inclusão (como o COI parece ter feito para permitir que Khelif e Lin competissem em Paris) não tem sustentação fora de certos redutos progressistas”,escreveu Doriane Lambelet Coleman, professora de direito na Universidade Duke (EUA) especializada em sexo e gênero, num artigo na revista australiana Quillette.
“Qualquer padrão de elegibilidade que nega ou desconsidera a biologia ligada ao sexo é necessariamente derrotante para a categoria”, acrescentou.
Numa amostra da temperatura do debate, Coleman é criticada num site de ativismo transgênero como “uma segregacionista sexual cuja principal preocupação é manter o segregacionismo que mantém mulheres e meninas em papeis inferiores na sociedade”.
Informação
Folha de São Paulo