Saúde

Argentina se torna refúgio para brasileiras que querem abortar

Foi em comum acordo. Quando os enjoos começaram e a brasileira M. fez um teste de gravidez no banheiro de casa sem que a família, que estava na sala ao lado, soubesse, ela chamou o namorado. “O que vamos fazer?” Ser pais aos 21 e 23 anos não era uma opção.

Estudantes universitários, eles decidiram abortar. Mas M. queria um procedimento seguro, sem riscos de que terminasse em uma sala de hospital e potencialmente fosse hostilizada pela tentativa.

“Vamos a outro país”, ela sugeriu mesmo sem nunca ter colocado os pés para fora do Brasil. Os dois pesquisaram na internet, descobriram sobre o direito à interrupção da gravidez na Argentina e, como cada vez mais mulheres brasileiras, M. viu no país vizinho um refúgio seguro para abortar.

O casal desembarcou em Buenos Aires em uma sexta-feira, quando passou a ser acompanhado pela reportagem, mas ainda tinha um longo caminho. Seu destino era Rosário, a 4 horas de ônibus da capital.

Recentemente estampada no noticiário como uma cidade dominada pela violência do narcotráfico, esse município portuário da província de Santa Fe, o quarto mais populoso do país, com cerca de 1,3 milhão de habitantes, é pioneiro no direito ao aborto legal na Argentina.

M. chegou grávida de 11 semanas e 4 dias e, após poucas horas de sono, foi a uma clínica privada que nos últimos anos passou a receber cada vez mais mulheres do Brasil que descobrem seus serviços pela internet, por indicação de conhecidas ou de projetos sociais.

Com aquele período gestacional, ela se enquadrava na chamada IVE, a interrupção voluntária da gravidez assegurada até as 14 semanas. Sem necessidade de justificar seus motivos, uma mulher que esteja dentro deste período de gravidez pode acessar o procedimento no país.

Na clínica Musa, a poucos passos do prédio da Faculdade de Medicina da Universidade Nacional de Rosário, M. chegou acompanhada do namorado para realizar o procedimento conhecido como AMIU, a aspiração manual intrauterina realizada em cerca de 20 minutos, com anestesia local e acompanhamento de uma médica e uma enfermeira.

Do início ao fim, ela esteve acompanhada por Barbara Paiva, médica brasileira formada em Rosário que há dois anos trabalha na clínica e se tornou uma espécie de ponto de referência para todas as brasileiras, notadamente pelo idioma. A maioria, como M., não fala espanhol.

Paiva traduzia tudo que as demais profissionais diziam e explicava aos detalhes o procedimento para M. O AMIU não afeta a fertilidade da mulher, tampouco deixa marcas. Por isso, a M. também foi ofertada a possibilidade de colocar um DIU (dispositivo intrauterino) após serem explicadas todas as possibilidades de prevenção.

Ela aceitou, e após cerca de 15 minutos do fim do procedimento saiu do consultório de mãos dadas com o parceiro, caminhando, após agradecer, com abraços, às profissionais.

No fim de 2020, com um mar de mulheres com seus lenços verdes do lado de fora, o Congresso argentino legalizou o direito à interrupção voluntária da gravidez e o sacramentou em lei no começo de 2021. Foram anos de intensos debates que paulatinamente ganharam força para mudar a criminalização da prática no Código Penal.

Muitas brasileiras nem sequer sabem da realidade das argentinas. Mas ganham conhecimento ao se verem em desespero. Como ocorreu com G., também representada apenas pela inicial de seu primeiro nome para preservar seu anonimato por receio de hostilidades.

Aos 43 anos e pouco tempo após fazer uma cirurgia bariátrica, ela descobriu estar grávida do noivo. Já mãe de quatro filhos, G. recebera uma recomendação expressa de sua médica ao ter a caçula, de 10 anos: engravidar novamente não deveria ser uma opção. As condições de seu útero e de órgãos próximos, após três cesarianas, a enquadravam em uma gravidez de alto risco. Ela buscou sua médica, que confidenciou querer ajudá-la a realizar um aborto, mas não ter alternativa.

G. pensou em judicializar o caso, mas também temeu que o desenrolar demorasse enquanto a gestação avançava. Por duas vezes, comprou remédios na internet. As pílulas, falsas, não fizeram efeito algum. Até que, por meio de um projeto social, soube das condições na Argentina e também foi à clínica Musa com 13 semanas de gestação, sozinha.

“Ter de sair do meu país para algo que eu entendo que era um direito meu me doeu muito”, diz ela. “Eu amo ser mãe, passei praticamente toda a minha vida adulta exercendo esse papel. Mas não queria deixar meus quatro filhos órfãos”, relata, um ano após o procedimento.



Eu amo ser mãe, passei praticamente toda a minha vida adulta exercendo esse papel. Mas não queria deixar meus quatro filhos órfãos

Proibido para venda no Brasil, o Cytotec (misoprostol), medicamento usado para o aborto autogestionado, que pode ser realizado em casa, segue sendo vendido em redes ilegais. A reportagem entrou em contato com uma rede de vendas no aplicativo de mensagens Telegram.

Primeiro, entrou em um grupo que dizia vender as cápsulas. Após menos de um minuto, recebeu uma mensagem no privado: “olá, boa tarde, está precisando de ajuda com gravidez indesejada?”.

Os administradores dizem que esse medicamento vem da França, garantem que é verdadeiro, perguntam qual o período gestacional e então indicam a quantidade de comprimidos. O preço vai de R$ 800 a R$ 2.100. O medicamento chega por correio escondido em embalagem de produtos de maquiagem, como pó solto.

Desde 2022, a clínica Musa, que opera na rede privada, recebeu em Rosário mais de 1.140 mulheres para realizar o aborto seguro. Destas, 301 eram do Brasil, o que faz das brasileiras quase 90% das estrangeiras que procuram a clínica, ao lado de poucas chilenas e peruanas.

Também é possível comprar em farmácias o misoprostol e realizar um aborto autogestionado tomando comprimidos em alguns intervalos de horas. Para isso, porém, é preciso receita médica. Há também a possibilidade, ainda que mínima, de o medicamento não funcionar. Por isso o AMIU tem se tornado prática comum.

A enorme maioria dos procedimentos realizados é em mulheres até 13 semanas de gestação. Mas há muitos outros casos, menos conhecidos mesmo entre as argentinas. A legalização do procedimento na lei de 2021 assegura que também têm direito ao aborto aquelas mulheres que pela gestação observarem sua saúde integral em risco.

O termo “integral” é chave nesse contexto. Ainda que em disputa, ele se baseou na compreensão da OMS (Organização Mundial da Saúde) que considera que uma pessoa é saudável não apenas quando não tem uma doença, mas quando seu bem-estar físico, mental e social está assegurado. Assim, na Argentina também se leva em conta a saúde psíquica.

Em algumas regiões argentinas, como Rosário, entra nesse balaio também o que chamam de “saúde econômica”: a capacidade financeira de sustentar a si mesma e a um futuro filho, por exemplo.

Neste caso, mulheres em estágio mais avançado de gestações também podem abortar. Agora não mais baixo o guarda-chuva do chamado IVE, mas sim após falarem com seus médicos e, muitas vezes, um psicólogo.

Foi o caso da brasileira J., que descobriu a gravidez com 17 semanas. Ela tinha DIU e usava preservativos com o parceiro fixo. Nunca quis ser mãe. “Tive uma rede de apoio, amigos e parceiro. Tinha muita certeza do que queria. Ainda assim, a pior coisa é o sentimento de culpa. Pela criminalização no seu país de origem, mesmo estando na Argentina você se sente uma criminosa”, relata J.



Tive uma rede de apoio, amigos e parceiro. Tinha muita certeza do que queria. Ainda assim, a pior coisa é o sentimento de culpa. Pela criminalização no seu país de origem, mesmo estando na Argentina você se sente uma criminosa

A legalização do aborto na Argentina mudou a realidade de um país no qual a prática já acontecia às margens da saúde pública. E também transformou o debate na comunidade médica. Ainda hoje há muitos dos chamados objetores: médicos que se negam a realizar esse procedimento. Mesmo entre os que realizam, é comum que cada um estipule o período limite gestacional até o qual aceita fazê-lo.

O ginecologista Daniel Teppaz, professor da pós-graduação em medicina da Universidade Nacional de Rosário, carrega em sua trajetória pessoal um exemplo dessa transição na comunidade médica.

Na década de 1980, frente a uma exigência da província de Santa Fe para que médicos denunciassem mulheres que haviam abortado, ele entregou aos policiais diversas delas que chegavam ao hospital com complicações após o procedimento em casa.

Mas hoje Teppaz é uma referência na defesa do direito ao aborto e ajudou a construir os protocolos de Rosário. “Naquela época morriam de uma a duas mulheres por mês no hospital em complicações após o aborto. Quando paramos de denunciá-las e elas começaram a buscar mais a saúde pública sem medo, pararam de morrer. Tive uma formação religiosa sobre o tema, até que entendi sua importância.”

As mortes por causas relacionadas ao aborto diminuíram na Argentina desde a legalização do procedimento. De 50 casos em 2013, passaram a 18 dez anos depois. A queda se acentua a partir de 2021, ano em que a lei passa a valer e que registrou 13 casos ante mais de 23 em todos os anos anteriores da série histórica, segundo os números oficiais.

Rosário debatia o assunto mesmo antes de ele chegar aos holofotes nacionais, fruto de anos consecutivos nos quais sua administração esteve nas mãos de prefeitos que eram profissionais de saúde e pró-direitos das mulheres e da atuação do Partido Socialista.

Ao receber a reportagem na sede da sigla no município, a hoje deputada nacional Mónica Fein, prefeita rosarina de 2011 a 2019, lembra de um caso de 2007, quando uma menina de 11 anos engravidou após estupro. O Código Penal permitia apenas o aborto para mulheres violentadas que fossem consideradas incapazes por algum transtorno mental. Nos termos do antigo texto, “que fossem idiotas ou dementes”.

Rosário ainda assim realizou o procedimento na menor de idade. E a ampliação do direito ao aborto a qualquer mulher estuprada só viria a ser assegurada no país em 2012, com uma decisão do Supremo.

“Proibir o aborto é apenas deixar de ver a realidade com os olhos do Estado”, diz Fein. “Parece-me que o melhor, então, é reduzir danos.”

Desde 2021, o laboratório público de produção de medicamentos rosarino passou a pioneiramente produzir misoprostol, barateando o acesso ao medicamento em meio a uma crise econômica que torna as importações em dólares ainda mais difíceis.

Em fevereiro deste ano, correligionários do presidente Javier Milei, abertamente contra o direito ao aborto, apresentaram um projeto de lei para derrubar a legalização do procedimento.

O PL propõe punir com pena de um a três anos de prisão mulheres que abortem caso não corram risco de morte comprovado. Não há no horizonte uma data para o projeto entrar em debate.


  • Para mulheres até a 14ª semana do período gestacional;
  • Quando a gravidez é fruto de violência sexual, independente do tempo de gestação;
  • Quando a saúde integral da gestante estiver em risco, também mesmo que fora daquele tempo gestacional.

Informação

Folha de São Paulo

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