Descarte de canetas emagrecedoras e impacto do lixo gerado por elas preocupam especialistas
Todos os dias, no Paraná, a aposentada Lizmara Pignanelli, 62, pega uma caneta de Ozempic, escolhe a dose que vai tomar e aplica sob a pele.
A agulha usada para a injeção é então desenroscada e levada temporariamente para uma garrafa. A primeira caneta concluída vai, por sua vez, para um saco com remédios vencidos e embalagens de comprimidos vazias. “Eu já descartei muito no lixo de reciclados”, diz Lizmara.
“Mas aprendi o jeito correto. Quando a garrafa e a sacola enchem, entrego tudo em um posto de coleta. Na cidade onde moro tem a farmácia da prefeitura e a UBS (Unidade Básica de Saúde) do meu bairro.”
A aposentada usa a medicação desde março como tratamento para perder peso. No Brasil, vendas e distribuição de canetas preenchidas com soluções para diabetes e emagrecimento somam milhões de unidades por mês no mercado. Não há dados oficiais sobre a quantidade de plástico, agulhas e de outros materiais que o segmento gera nem do que acontece depois com esses resíduos.
Especialistas alertam para riscos do descarte inadequado, em um contexto de alto consumo desses tratamentos e de ações “tímidas e isoladas” para lidar com o problema. Entre os estados brasileiros, medidas na área são identificadas apenas no Paraná. Na indústria, soluções se dão em escala piloto. O volume reciclado hoje é inferior a 2%.
“Não existe no Brasil um programa nacional para o descarte de agulhas e nem dados estimados sobre este descarte. As pessoas mais conscientes tentam descartar nas farmácias ou em UBS, mas nem sempre elas recebem”, diz JF Agostini Roxo, CEO da BHS Brasil, empresa criadora do Programa Descarte Consciente.
A iniciativa, que coleta medicamentos vencidos ou em desuso em farmácias de 24 estados para destinação ambiental adequada, não recebe canetas. “O impeditivo é o risco do descarte com a agulha. A norma da ABNT 16.457 não permite que coletores de medicamentos de uso humano ou de uso animal recebam outro resíduo que não seja medicamento”, explica Roxo.
Ministério da Saúde e farmacêuticas recomendam que agulhas pós-uso sejam colocadas em recipientes rígidos, como latas, para evitar acidentes. Quando cheios, esses recipientes devem ser levados para as UBS para descarte adequado. Geralmente, são encaminhados para tratamento e incineração junto ao lixo hospitalar e, depois, para aterros sanitários.
Sílvia André Uehara, doutora em enfermagem em Saúde Pública pela USP (Universidade de São Paulo) e professora pesquisadora da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), frisa que o volume de resíduos com as canetas tem crescido e tende a aumentar com o avanço da adesão a esses tratamentos. Índices alarmantes de sobrepeso e obesidade no país explicam o cenário.
“A situação preocupa devido à falta de orientação da população sobre como proceder com esses resíduos. Isso estimula o descarte inadequado dos materiais”, diz a professora. Acidentes com agulhas incluem risco de contaminação de hepatite B e C, HIV e tétano. “Em um país onde temos catadores que ainda vão buscar no lixo a sua fonte de renda e, às vezes, até o alimento, imagina achar uma caneta dessas?”
A endocrinologista Daniele Zaninelli, membro da SBEM (Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia) e responsável pela campanha Descarte Amigo – Agulha no Lixo é um Perigo, concorda que “a falta de informação sobre a questão do descarte é enorme”.
“O paciente dificilmente recebe essa informação em serviços de saúde. A maioria das bulas não vem com orientação de descarte. Além disso, as pessoas, mesmo quando separam esse lixo, acabam descartando no lixo reciclável ou no lixo comum, até por não saberem para aonde levá-lo.” O problema, diz Zaninelli, é amplo e difícil de ser mensurado.
Na cidade de São Paulo, a Secretaria Municipal de Saúde não estima quantas das mais de 1,5 milhão de canetas distribuídas neste ano retornam a UBSs após o uso. O que é feito com as canetas vendidas em farmácias também é uma incógnita. Dados da empresa Close-up International, para a Folha, mostram que mais de 5,11 milhões de unidades foram comercializadas só em março, incluindo diferentes marcas.
O Ozempic, aprovado oficialmente para diabetes tipo 2 e vedete por efeitos que levam ao emagrecimento, participa com 73% nesse bolo, 8,22 pontos percentuais a mais que em igual período de 2023.
“Se a caneta vai parar no aterro ou no lixão, o plástico começa a se degradar e a virar microplástico. Ele vai se infiltrar no solo e cair na água ou voar. E a gente está inalando, comendo e absorvendo isso. Vários órgãos do nosso corpo já têm plástico. E, aqui, um agravante é o problema de plástico contaminado por remédio”, diz a doutora em patologia e professora da USP (Universidade de São Paulo) Thais Mauad.
Ela frisa que não se trata de pedir o fim das canetas, mas, sim, da necessidade de mudanças no cenário. “Esse é mais um produto que chega na cadeia do plástico e mais um que, se for parar no lixão, contamina. O plástico vem do petróleo e vira CO2 —o mais abundante gás do efeito estufa. Não só a indústria, mas todo mundo tem que perceber a gravidade disso. Não dá tempo para trabalho de formiguinha. Tudo o que a gente conseguir diminuir de plástico ou dar o destino correto, sem deixar ir para o meio ambiente, é necessário.”
Um projeto piloto da Novo Nordisk, fabricante do Ozempic, de outros medicamentos com aplicação semelhante e principal fornecedora de insulina para o SUS (Sistema Único de Saúde), manda parte das canetas produzidas para a reciclagem. Aproximadamente 70% de uma caneta é plástico. O resto é composto de vidro, borracha e metal.
Desde 2022, cerca de 50 mil unidades foram coletadas pelo programa. O material é recebido de pacientes do IEDE (Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia), em que agulhas também podem ser entregues separadamente para incorporação ao lixo hospitalar e posterior tratamento e descarte. Também é recolhido no escritório da empresa, em São Paulo.
Em modelo de teste, parte do plástico foi destinada à produção de pás e vassouras, segundo a gerente de sustentabilidade da Novo Nordisk, Patricia Byington. O volume recolhido equivale a mais de 800 kg de plástico e, para efeito de comparação, a 1,34% das 3,73 milhões de canetas de Ozempic que as farmácias venderam só em março.
A Novo Nordisk estima que, no programa, 47% das canetas são devolvidas ao IEDE após o uso. “Nós recebemos mais ou menos 27 kg, o equivalente a mais de mil canetas, por semana”, detalha a endocrinologista Rosane Kupfer, chefe do Serviço de Diabetes do Instituto. Ela afirma que o acúmulo de canetas é enorme no mundo e a questão que envolve o descarte é urgente —e também requer soluções por meio de políticas públicas.
Na Novo Nordisk, a intenção, segundo Byington, é aumentar a taxa de retorno do programa com mais ações de engajamento e comunicação, e expandir pontos de coleta. Uma solução para a reciclagem em larga escala, como na Dinamarca (país sede da farmacêutica), está sendo desenhada. A empresa, afirma, também busca reduzir o consumo de plástico por meio de dispositivos reutilizáveis/duráveis e produtos de administração semanal. Mira, ainda, alternativas com menor emissão de carbono em comparação com os plásticos de origem fóssil das canetas.
Informação
Folha de São Paulo