Economia

Empresas de tecnologia investem bilhões em fusão nuclear, mas retorno ainda é incerto

Dentro de uma fábrica ampla em um subúrbio tranquilo de Boston, trabalhadores usando capacetes e óculos de segurança dão voltas ao redor de ímãs gigantes poderosos o suficiente para levantar um porta-aviões.

Em outro prédio —onde parte do trabalho ocorre sob rigoroso sigilo— os ímãs estão sendo montados em uma estrutura com aparência de nave espacial, projetada para conter um campo magnético em temperaturas que chegarão a dezenas de milhões de graus. O plano é comprimir átomos e criar energia a partir da fusão, uma fonte potencialmente ilimitada e barata de energia que os cientistas têm perseguido por décadas.

O reator em construção na Commonwealth Fusion Systems é um entre pelo menos 43 projetos ou parcerias da iniciativa privada nos Estados Unidos e países aliados que estão correndo para comercializar a energia de fusão. É uma conquista que há muito tempo escapa aos cientistas —a ponto de muitos ainda acreditarem que ela simplesmente não é possível, pelo menos não em um futuro próximo.

Mas empresas de tecnologia e investidores estão injetando bilhões nessas companhias, animados com avanços que, segundo eles, colocaram uma reação de fusão sustentada perigosamente perto de se tornar realidade. A China também entra nessa equação, com um esforço patrocinado pelo governo que aumenta a pressão sobre o Ocidente, ameaçado de ficar para trás nessa corrida global.

Cientistas que sonham com a fusão não estão mais trabalhando nas sombras. Eles estão sendo cortejados por governadores, bilionários e gigantes da tecnologia ansiosos para entrar no início do que veem como uma economia de fusão transformadora e livre de carbono.

“Muitas pessoas pensavam que estávamos perseguindo fantasmas”, disse Michl Binderbauer, da TAE Technologies, que se associou ao Google para construir um reator de fusão no sul da Califórnia e é um dos principais rivais da Commonwealth.

Agora, mais de US$ 8 bilhões, principalmente de dinheiro privado, foram investidos em startups de fusão, a maior parte nos últimos quatro anos.

“Isso realmente tem a capacidade de mudar o mundo”, disse Genevieve Kinney, sócia da General Catalyst, uma empresa de capital de risco que no final do ano passado liderou uma rodada de financiamento de US$ 900 milhões para uma jovem empresa chamada Pacific Fusion. “Se acontecer, os resultados são enormes. Poderia substituir muitas das tecnologias que usamos hoje.”

Os secretários de Energia atuais e anteriores estão impulsionando sua promessa. “A fusão atingiu aquele ponto de inflexão onde as coisas vão acontecer rapidamente”, disse o secretário de Energia Chris Wright, um estudante de fusão décadas atrás no MIT que acabou se tornando CEO de uma empresa de petróleo e gás, em uma conferência em Washington neste mês.

Enquanto funcionários de Trump reduziram o apoio à energia eólica e solar, Wright tem promovido a fusão porque, se aproveitada, produziria energia independentemente do clima ou hora do dia. A fusão também é apoiada por um de seus predecessores, Ernest Moniz, um físico nuclear que antes era cético quanto à sua comercialização.

Certamente, ninguém está prometendo um milagre da noite para o dia. A indústria está lidando com o enorme desafio de sustentar uma reação de fusão, um empreendimento massivo e caro que pode exigir materiais que ainda não foram inventados.

As empresas mais otimistas falam em colocar energia na rede dentro da próxima década, mas advertem que a eletricidade das primeiras usinas será muito cara e limitada. Os céticos alertam que pode levar pelo menos mais uma ou duas décadas. Mas autoridades federais e estaduais já estão começando a planejar para o dia em que a energia de fusão se torne realidade.

As visões de alguns céticos da fusão começaram a mudar depois que cientistas do governo, no final de 2022, usaram lasers gigantes para gerar uma reação que produziu mais energia do que foi usada para criá-la. Essa reação durou apenas uma fração de segundo. Mas provou que a fusão era alcançável, transformando a busca em um desafio de engenharia para criar uma reação duradoura, contê-la e canalizá-la em energia utilizável.

As previsões para a demanda de eletricidade em todo o mundo nas próximas décadas superam em muito o que os especialistas dizem que as empresas de energia podem fornecer usando as tecnologias atuais.

Grande parte dessa demanda é impulsionada pelas enormes necessidades energéticas da indústria de inteligência artificial, o que tem levado algumas das empresas mais influentes do Vale do Silício a se envolver diretamente na aposta ambiciosa da fusão nuclear. Elas estão colocando suas máquinas de IA para trabalhar no desafio de tirar a fusão dos laboratórios e levá-la à rede elétrica.

A TAE, por exemplo, está colaborando tão estreitamente com o Google em seu trabalho que o gigante da tecnologia do Vale do Silício tem uma sala de controle virtual em seu campus, permitindo que se envolva com os experimentos da empresa de fusão.

“Eles têm acesso a todos os dados”, disse Binderbauer, um físico que fundou a TAE há mais 25 anos. “É como um casamento. Restam poucos segredos. O resultado é que eles estão se associando mais profundamente conosco.”

É um cenário radicalmente diferente de quando Binderbauer lançou a empresa.

Agora, Moniz faz parte do conselho da TAE, e Google e Chevron são grandes investidores. O CEO da OpenAI, Sam Altman, é o presidente-executivo da Helion Energy, empresa de fusão da costa oeste dos EUA, que firmou um acordo para fornecer eletricidade à Microsoft se conseguir colocar uma usina em funcionamento.

As preocupações de que a China vencerá a corrida da fusão também estão impulsionando as empresas dos EUA. A China está construindo o que os especialistas acreditam que será um dos reatores de fusão mais poderosos do mundo, maior que a instalação do governo dos EUA perto de Berkeley, Califórnia.

Assim como os esforços dos EUA, o projeto está focado no avanço do design de armas nucleares, já que reatores de fusão podem ser usados para simular as condições de uma explosão nuclear.

A China agora está investindo substancialmente mais recursos públicos em fusão do que os Estados Unidos. O risco é que a energia de fusão possa ser mais uma inovação energética dos EUA, como painéis solares e baterias de carros elétricos, que fica estagnada no país em meio à falta de investimento público, permitindo que a China monopolize a indústria e suas cadeias de suprimentos.

“O vencedor na corrida da fusão será o país que conseguir construir essas usinas em escala e fazê-lo em todo o mundo”, disse Jimmy Goodrich, pesquisador do Instituto de Conflito e Cooperação Global da Universidade da Califórnia.

Ele disse que a China está bem posicionada, pois está superando os Estados Unidos na construção de reatores tradicionais de fissão nuclear —que alimentam as usinas nucleares de hoje usando tecnologia que divide átomos, em vez de fundi-los— com 27 em construção em comparação com zero nos EUA.

“A velocidade e escala com que estão avançando é notável”, disse Goodrich. “Eles podem aplicar isso à fusão, e nós ficamos para trás.”

Alemanha, Japão e Reino Unido também estão correndo para construir a primeira usina de energia de fusão do mundo.

Nos Estados Unidos, as empresas estão competindo entre si, compartilhando algumas descobertas científicas e tecnologias, mas também fazendo afirmações ousadas de que sua abordagem específica é superior e mais propensa a ter sucesso.

A TAE afirma ter a “abordagem mais limpa e segura para a fusão nuclear comercial”. Seu conceito é semelhante ao do sistema de ímãs da Commonwealth Fusion, conhecido como tokamak, mas foi projetado para usar um combustível diferente e operar em temperaturas mais baixas.

A Commonwealth possivelmente tem uma vantagem, tendo negociado um acordo com a Virgínia para localizar sua primeira usina de fusão perto de Richmond, com o objetivo de vender 400 megawatts de energia até o início da década de 2030. É eletricidade suficiente para alimentar um centro de dados de tamanho considerável.

A empresa gastou centenas de milhões de dólares em sua fábrica de ímãs em Massachusetts, que também ajuda a abastecer os experimentos de outras empresas de fusão.

Entre elas está a Type One Energy, que em fevereiro assinou um acordo com a Tennessee Valley Authority, a maior concessionária pública do país, para construir uma usina de energia de fusão de 350 megawatts chamada Infinity Two no terreno de uma antiga usina a carvão.

A Infinity Two seria alimentada pelo que é chamado de stellarator, que a empresa diz que será capaz de sustentar uma reação de fusão sem precisar inventar novos materiais para lidar com o calor e a intensidade de energia envolvidos, porque operará em temperaturas mais baixas.

A quebra de equipamentos é um dos maiores desafios que a fusão enfrenta, pois gerar energia por apenas alguns segundos pode destruir a maquinaria que cria essa energia.

“Se você tem uma abordagem promissora, mas ainda precisa inventar novos materiais, a dura realidade é que não vai colocar energia de fusão na rede em dez anos”, disse Christofer Mowry, CEO da Type One.

Outras empresas não estão usando ímãs, optando pela abordagem de laser gigante usada pelo governo dos EUA no Laboratório Lawrence Livermore, na Califórnia, onde cientistas geraram oito vezes desde o final de 2022 uma reação de fusão que expeliu mais energia do que consumiu, conhecida como “ignição”.

Os custos são tão altos e os desafios de engenharia tão extremos que um dos mais proeminentes especialistas em fusão dos EUA, o físico de Harvard e ex-conselheiro científico da Casa Branca John Holdren, disse em uma entrevista que “é extremamente improvável que vejamos energia de fusão na rede muito antes de 2050.”

Levou 70 anos para os cientistas alcançarem a ignição, disse Holdren, e desenvolver as capacidades de engenharia necessárias para sustentar essa reação é igualmente difícil. “Estamos muito aquém das condições que um reator prático exigiria”, disse ele.

Victor Gilinksy, ex-membro da Comissão Reguladora Nuclear, também alertou que as empresas estão subestimando os grandes obstáculos que ainda precisam superar.

Michel Claessens, ex-diretor de comunicações do ITER, um esforço internacional para avançar a ciência da fusão, diz que a indústria está enganando o público com suas promessas de que a energia de fusão está ao alcance.

Mas os cientistas envolvidos na busca dizem que essas visões estão ultrapassadas. “Investidores que passam até mesmo um tempo superficial investigando isso estão concluindo que há um caminho aqui”, disse Bob Mumgaard, um cientista do MIT que cofundou a Commonwealth Fusion Systems.

Ainda assim, a energia de fusão está agora onde a indústria automobilística estaria se tivesse descoberto a fórmula para construir um motor de combustão interna antes de o metal ter sido inventado, disse Greg Piefer, CEO da Shine Technologies, uma empresa de fusão em Wisconsin.

Isso a torna um negócio arriscado. A Shine está usando nêutrons de fusão para desenvolver produtos como máquinas de imagem e isótopos médicos, para que possa se manter solvente enquanto tenta desbloquear a eletricidade comercial.

Piefer está ciente de que nenhuma empresa de fusão vai vender eletricidade com lucro antes de atingir o que é conhecido como “break-even” científico —o ponto em que a reação de fusão gera mais energia do que é necessário para iniciá-la.

O único lugar nos Estados Unidos onde isso aconteceu é na instalação governamental em Livermore —que tem o tamanho de três campos de futebol e usa um pulso de laser que, por um bilionésimo de segundo, dispara mais energia do que 2.500 vezes toda a rede elétrica dos EUA.

“São centavos de calor por milhões de dólares investidos”, disse Piefer. “Ainda há muitos fatores a superar.”

Folha de São Paulo

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