Entenda o que é a viabilidade fetal que guia o PL Antiaborto por Estupro
Um dos temas centrais nas discussões do Projeto de Lei 1904, que pretende definir um teto para o aborto legal no Brasil para casos de estupro e tramita com urgência dentro da Câmara dos Deputados, é a viabilidade fetal, ou seja, a partir de quantas semanas o feto poderia sobreviver fora do útero. No entanto, não há consenso médico exato para o assunto e idade pode variar de hospital a hospital, a depender das condições do local.
O PL antiaborto quer definir um teto de 22 semanas, ou viabilidade fetal, para a realização do aborto legal nesse caso. Para gestante ou profissional que realizar o procedimento após o teto, o projeto prevê condenação por homicídio simples com pena podendo chegar a 20 anos.
A menção a viabilidade fetal no texto do PL cria risco para que situações como risco de vida a mãe e anencefalia fetal, em que o procedimento é permitido, sejam afetadas, podendo gerar obstáculo de acesso ao serviço para essas pessoas.
Coordenador no Brasil da Rede Médica pelo Direito de Decidir (Global Doctors For Choice), o médico ginecologista e obstetra Cristião Rosas diz que, para a comunidade médica, o conceito de viabilidade fetal é utilizado em contextos de partos prematuros quando, por alguma razão, a gestante precisa adiantar o processo de nascimento. Seja por razões da própria gravidez ou por desenvolvimento de doenças.
A viabilidade fetal, segundo Rosas, é utilizada para orientar a adequação nos cuidados intensivos neonatais, mas deve ser entendida como um último recurso porque prematuros possuem maiores riscos de sequelas e complicações —como as cardiológicas e respiratórias por conta da não formação completa.
Por isso, segundo ele, ao falar de aborto legal, a questão muda, e não deve ser utilizado o mesmo termo.
“Quando falamos em viabilidade fetal pensamos num parto prematuro e espontâneo em que existe um equilíbrio no desejo da mãe em relação ao interesse pelo bebê, então esse conceito não funciona para aborto induzido”, diz.
De acordo com ele, as 22 semanas de um feto são classificadas como prematuridade extrema. Cerca de 26, como prematuridade intermediária, e 37 como “a termo”, ou seja, com menores riscos de sequelas.
A inclusão da viabilidade fetal no PL, segundo Rosas, facilita a confusão sobre o tema. “Isso leva a uma banalização perigosa sobre os danos da prematuridade”, afirma o médico.
Representante da Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia) e presidente da Comissão de Medicina Fetal, Mário Burlacchini afirma que a viabilidade é a capacidade do feto viver fora do útero, nascer e ficar vivo —e que esse número depende de cada maternidade e berçário.
“Em geral, na maioria dos hospitais em São Paulo a viabilidade é 24 e 25 semanas, mas depende de cada berçário. Com certeza outros locais do Brasil devem ter uma idade gestacional maior”, diz Burlacchini.
A viabilidade é diferente se comparar o hospital de uma cidade remota com a de uma capital como São Paulo, mas também pode ser discrepante ao relacionar dois lugares dentro de um mesmo município, como por exemplo um hospital particular e uma unidade de saúde na periferia, afirma Rosas.
“Depende também dos recursos técnicos, aparelhos, equipe médica treinada em neonatologia, e diversos fatores”, diz o obstetra.
No Brasil, o Código Penal de 1940 não criminaliza a interrupção gestacional para gestação decorrente de estupro e caso haja risco à vida da mulher. Por decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), interrupção em caso de anecefalia fetal também não é punida. Até o momento, nunca foi definido em lei um prazo para realização do procedimento.
“Estamos tratando de aborto induzido, em que nem na lei brasileira, nem no conceito médico, está atrelado a idade gestacional, peso fetal ou viabilidade fetal”, diz Rosas. Para ele, o PL representa um retrocesso a uma lei estabelecida há 84 anos.
No Brasil, os abortos acima de 22 semanas de gestação correspondem a um terço das interrupções legais de crianças e mulheres —este último grupo, composto majoritariamente por pessoas que vivem em áreas remotas ou em situação de vulnerabilidade, encontra dificuldade no acesso ao direito previsto em lei, conforme mostra reportagem publicada pela Folha.
Em todo o país, apenas três hospitais realizam interrupção gestacional acima de 20 semanas.
Para Rosas, atrelar viabilidade fetal a aborto nos casos em que o procedimento é legal só funciona para causar confusão.
“Existe um falso dilema ético, porque ninguém é a favor do aborto, nem a própria pessoa que aborta”, afirma o médico.
“O conceito médico de viabilidade se atrela apenas ao parto prematuro espontâneo e não a aborto induzido”, diz.
Informação
Folha de São Paulo