Saúde

Implante cerebral e inteligência artificial devolvem voz a paciente com ELA

Há quatro anos, Casey Harrell cantou sua última canção de ninar para sua filha.

Naquela época, a ELA (esclerose lateral amiotrófica) havia começado a devastar os músculos de Harrell, tirando dele um ritual após o outro: passear com sua esposa, segurar sua filha, virar as páginas de um livro. “Como um ladrão noturno”, escreveu sua esposa, Levana Saxon, sobre a doença em um poema.

Mas nenhum foi tão devastador para Harrell, 46, quanto o desaparecimento de sua fala. Ele cantou sua última música de Whitney Houston no caraoquê. Ativista climático, ele fez sua última apresentação no Zoom sem assistência para colegas organizadores.

Em julho do ano passado, médicos da Universidade da Califórnia, Davis, implantaram cirurgicamente eletrodos no cérebro de Harrell para tentar entender o que ele estava tentando dizer. Isso o tornou a mais recente pessoa envolvida em uma busca científica que atraiu empresas com muito dinheiro como a Neuralink, de Elon Musk: conectar o cérebro dos humanos a computadores, potencialmente restaurando suas faculdades perdidas.

Os médicos disseram a Harrell que ele contribuiria para o avanço da ciência, mas que provavelmente o experimento não reverteria seu quadro.

Os resultados, porém, superaram as expectativas, conforme relataram os pesquisadores nesta quarta quarta (15) no periódico The New England Journal of Medicine, estabelecendo um novo padrão para decodificadores de fala implantados e ilustrando o potencial desses dispositivos para pessoas com distúrbios de fala.

“É muito emocionante”, disse o neurocirurgião Edward Chang, da Universidade da Califórnia, São Francisco, que não esteve envolvido no caso de Harrell, mas desenvolveu diferentes implantes de fala. Um dispositivo que alguns anos atrás parecia ficção científica, segundo ele, agora está “melhorando, sendo otimizado, tão rapidamente”.



A inovação chave foi colocar mais matrizes, com um direcionamento muito preciso, nas partes mais falantes do cérebro que podemos encontrar

Harrell recebeu no córtex cerebral quatro conjuntos de eletrodos que parecem pequenas camas de pregos. Isso foi o dobro do número que havia sido recentemente implantado nas áreas de fala de alguém com ELA, em um outro estudo. Os 64 pinos de cada conjunto captavam impulsos elétricos dos neurônios que disparavam quando ele tentava mover a boca, lábios, mandíbula e língua para falar.

Três semanas após a cirurgia, os cientistas se reuniram na sala de estar de Harrell na cidade de Oakland, Califórnia (Estados Unidos), para “conectá-lo”, ligando o implante a um banco de computadores com cabos conectados a dois postes de metal que se projetavam do crânio dele.

Depois de treinar brevemente os computadores para reconhecer a fala de Harrell, o implante começou a gravar o que ele pretendia dizer a partir de um vocabulário de 50 palavras com 99,6% de precisão.

O dispositivo funcionou tão bem, tão rapidamente, que os cientistas tiveram que interromper uma sessão inicial de análise. Em meio a uma tentativa de falar seu primeiro comando em voz alta —”Para que serve isso?”—, Harrell, tremendo e sorridente, desabou em lágrimas.

Para um ouvinte comum, “o que” e “serve” saíram da boca de Harrell confusos e indecifráveis. Porém, para os eletrodos ajustados aos neurônios individuais no cérebro dele, as palavras estavam perfeitamente claras. Uma tela na frente dele exibia exatamente o que ele estava tentando dizer.

Em vez de contar com os músculos faciais enfraquecidos de Harrell, o dispositivo recorreu às partes de seu córtex motor onde ele estava primeiro estabelecendo as instruções do que dizer.

“A inovação chave foi colocar mais matrizes, com um direcionamento muito preciso, nas partes mais falantes do cérebro que podemos encontrar”, disse o neurocientista Sergey Stavisky, da UC Davis, que ajudou a liderar o estudo.

No segundo dia, a máquina estava percorrendo um vocabulário disponível de 125 mil palavras com 90% de precisão e, pela primeira vez, produzindo frases de autoria de Harrell. O dispositivo as transmitia em uma voz parecida com a dele –com base em entrevistas de podcast e outras gravações antigas, os pesquisadores produziram uma versão da voz pré-ELA de Harrell.

Conforme os cientistas treinavam o dispositivo para reconhecer os sons, ele ficava cada vez melhor. Em oito meses, Harrell chegou a pronunciar quase 6.000 palavras únicas, segundo o estudo. O dispositivo manteve uma precisão de 97,5%.

Isso superou a precisão de muitos aplicativos de smartphone que transcrevem o discurso intacto das pessoas. Também marcou uma melhoria em estudos anteriores nos quais os implantes alcançaram taxas de precisão de aproximadamente 75%, ou seja, deixando 1 em cada 4 palavras sujeita a interpretação incorreta.

E, enquanto dispositivos como o Neuralink ajudam as pessoas a mover cursores em uma tela, o implante de Harrell permitiu que ele explorasse o terreno infinitamente maior e mais complexo da fala.

“Isso passou de uma demonstração científica para um sistema que ele pode usar todos os dias para falar com a família e os amigos”, disse o neurocirurgião David Brandman, que operou Harrell e liderou o estudo ao lado de Stavisky.

Esse salto foi possibilitado em parte pelos tipos de inteligência artificial que alimentam ferramentas de linguagem como o ChatGPT. Em um determinado momento, o implante de Harrell capta a atividade em um conjunto de neurônios, traduzindo seu padrão de disparo em unidades de som de vogal ou consoante. Os computadores, então, agregam uma sequência desses sons em uma palavra, e uma sequência de palavras em uma frase, escolhendo a saída que consideram mais provável de corresponder ao que o paciente tentou dizer.

Ainda é incerto se o mesmo implante seria tão útil para pessoas mais gravemente paralisadas. A fala de Harrell havia se deteriorado, mas não desaparecido.

E, apesar de toda a sua utilidade, a tecnologia não pode mitigar o impacto financeiro de tentar viver e trabalhar com ELA. O seguro pagará pelas necessidades de cuidados de Harrell somente se ele entrar em cuidados paliativos ou se parar de trabalhar e se tornar elegível para o Medicaid (programa de saúde social americano), disse Saxon. Essa situação, acrescentou ela, leva outros com ELA a desistir de tentar prolongar suas vidas.

Esses mesmos motivos também tornam mais provável que pessoas com deficiências se tornem pobres, deixando o acesso a implantes de ponta ainda mais fora de seu alcance, de acordo com a professora de neurologia Melanie Fried-Oken, da Universidade de Ciências e Saúde de Oregon.

Para Harrell, viver em um mundo capaz de conectar computadores a cérebros, porém incapaz de lidar com a precariedade financeira daqueles que mais precisam deles, tem se mostrado perturbador. “Muito sortudo e muito bravo”, afirmou ele.

Informação

Folha de São Paulo

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