Insônia e estresse pós-traumático são sintomas comuns de mulheres que sofrem violência doméstica
“A violência acaba com a vida da mulher“, constata Gabriella Nicaretta. Aos 33 anos, ela advoga na defesa de mulheres que passam por violência doméstica, após ela mesma experienciar uma relação violenta por dois anos. “Começou com gritos e foi crescendo. Ele passou a arremessar coisas, a ser mais violento, até que fui espancada”, conta a advogada.
No primeiro episódio de agressão, a advogada conta que, em vez de ir à delegacia registrar um boletim de ocorrência, levou o então namorado ao psiquiatra. “Na minha cabeça, eu não queria que ele fosse violento. Criei vários mecanismos para acreditar que aquilo não estava acontecendo, que ele ia mudar. A vítima tende a minimizar, por mais grave que seja aquele acontecimento”, relata.
Mulheres que sofrem violência doméstica têm risco três vezes maior de desenvolver transtornos relacionados à saúde mental, enquanto 40% delas têm tendência de desenvolver transtorno de estresse pós-traumático, que pode ser desencadeado até três anos após a agressão. “Olhamos o impacto na mulher na condição de uma violência recente. Mas isso pode perpetuar e ser desencadeado muito tempo depois”, afirma a psicóloga.
Na última quarta-feira (7), a Lei Maria da Penha completou 18 anos. Uma referência na defesa das mulheres, a lei conta com mecanismos para prevenir e coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, seja ela física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. Dentre os preceitos da lei está o de acolhimento das vítimas, explica a psicóloga Ana Rosa Detilio.
“A Lei Maria da Penha tem uma condição muito robusta com as Delegacias da Mulher, o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) e o Centro de Referência da Assistência Social (CRAS), que são instituições que recebem as mulheres.”
Ela relata que o próprio ato de violência psicológica gera confusão na vítima, que se questiona o tempo todo se está sofrendo violência ou se é o companheiro está “em um dia ruim”. “É uma violência muito latente, e muito difícil de ser percebida, porque às vezes está implícita no dia a dia”, afirma.
Isso é enfrentado até hoje por Nicaretta, que diz não saber se vai se recuperar algum dia. “Faço terapia e tomo remédios. A gente perde totalmente a referência. Sinto que não vou conseguir me relacionar de maneira funcional com mais ninguém”, conta.
Jane Felipe, professora no programa de pós-graduação em educação da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e integrante do Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero, lista os efeitos mais comuns de mulheres que passam por violência: tristeza profunda, estresse pós-traumático, insônia ou pesadelos constantes, evitar lugares e pessoas.
“Pesquisas indicam ainda que as mulheres apresentam um alto grau de ansiedade, insônia, depressão, baixa autoestima, gerando dificuldades na tomada de decisões, em especial na iniciativa de romper relacionamentos tóxicos”, diz.
De acordo com dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024, a violência contra a mulher no Brasil segue crescendo. Foram 258.941 registros de violência doméstica em 2023, 9,8% a mais que em 2022.
A promotora da Justiça e professora da PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo, Valeria Scarance, lembra que a violência contra a mulher não se esgota na violência física ou verbal, trazendo ainda marcas com grande impacto psicológico. “É muito raro encontrar uma mulher vítima de violência sem danos para sua saúde física ou psíquica”, afirma.
Assim foi o caso de Gládis (nome fictício para preservar a identidade da vítima), 58. O então marido da empresária começou, em 2013, com uma agressão verbal, que escalou para a violência moral e então chegou ao estágio de violência física. Sua advogada pediu uma medida protetiva oferecida pela Lei Maria da Penha. “Há uma década eu vivo em paz, digo que tenho uma vida normal. Ele não teria parado com as agressões e perseguições se não fosse a lei”, conta.
Um ponto comum nas vítimas, segundo Detilio, é de a mulher internalizar que a ação foi movida por ela. “Ela vai realmente acreditar que tem culpa e por isso vai cedendo aos desejos do parceiro. Isso geralmente é a violência psicológica completamente instalada. É uma vulnerabilidade, talvez seja o sintoma mais proeminente e grave da situação de violência de uma mulher”, diz.
Scarance também alerta para as consequências físicas e mentais dos filhos que convivem em um ambiente familiar e violento. “Eles aprendem um padrão que muitas vezes repetem ao longo da sua vida”, afirma. Prejuízos no desenvolvimento cognitivo, dificuldades de aprendizagem ou ainda algum tipo de transtorno, agressividade, depressão, isolamento, ansiedade podem ser quadros notados em crianças e adolescentes que cresceram em um contexto hostil.
Em junho deste ano, foi sancionada a lei que estabelece prioridade no atendimento social, psicológico e médico à mulher vítima de violência doméstica e familiar. Além da assistência, a norma estabelece um atendimento prioritário para a realização de cirurgia plástica reparadora de lesões causadas pela agressão.
Felipe, da UFRGS, considera que um dos pontos centrais para a prevenção deve ser construído antes da violência tomar parte, com educação nas escolas, e também em outras esferas da sociedade. “É preciso, portanto, fortalecer a autoestima de meninas e mulheres, para que consigam identificar situações de perigo em seus relacionamentos, fortalecendo a ideia de que é fundamental ter independência emocional e financeira”, avalia.
“A melhor forma de conscientização [da violência doméstica] é desmistificar atos de violência psicológica confundidos como atos de amor e cuidado e entender que a violência psicológica pode ter danos mais profundos do que a violência física”, afirma a promotora.
Como parte da iniciativa Todas, a Folha presenteia mulheres com três meses de assinatura digital grátis
Informação
Folha de São Paulo