Juíza propõe práticas de nossa cultura na mediação de conflitos
Sob o título “Por que mediação brasileira?“, o artigo a seguir é de autoria de Valeria Ferioli Lagrasta*, juíza da 2ª Vara da Família e das Sucessões de Jundiaí (SP).
Após mais de dez anos da inclusão da mediação no processo civil brasileiro, com a Resolução do Conselho Nacional de Justiça nº 125/2010, somos trazidos à reflexão: A mediação, é método de solução de conflitos típico de nossa cultura ou nos vem sendo imposta, inclusive pela legislação, sem qualquer adaptação às características e peculiaridades do nosso povo?
Muito se preconiza, que tanto a mediação, quanto à conciliação, nossa velha conhecida, podem auxiliar o Judiciário no afastamento da morosidade, diante da extinção dos processos; ou até mesmo da ausência destes, como instrumentos de desjudicialização.
Mas será essa afirmativa verdadeira?
O acesso à Justiça, como acesso ao Poder Judiciário, é realmente garantido a todos os brasileiros?
Nos rincões do Brasil, em comunidades isoladas ou semi-isoladas, como as de indígenas, quilombolas, ribeirinhas, rurais, e também nas marginalizadas dos grandes centros urbanos, existe uma maioria de vulneráveis e hipossuficientes que sequer tem meios de pagar um transporte até o Fórum mais próximo, sendo ainda mais difícil acessarem uma plataforma digital de solução de conflitos.
O que ocorre, é que acabam resolvendo seus conflitos no âmbito da própria sociedade em que vivem, com o auxílio de lideranças, que se estabelecem, não por votação ou imposição de decisões, mas pelo respeito que advém exatamente da preocupação que têm para com seus semelhantes e do auxílio que lhe prestam.
Detecta-se, nessas comunidades, um sistema de “justiça” que mantém a paz e harmonia de seus integrantes, fazendo parte dele, a solução de conflitos das mais diversas ordens: vizinhança, família, relacionamento e cobranças.
E o método de solução de conflitos utilizado pode ser chamado de “mediação”, mas em nada se parece com aquela preconizada nas leis brasileiras e que foi praticamente “importada”, sem qualquer adaptação, de outros países, principalmente Estados Unidos.
De outro lado, a experiência da mediação no Judiciário, demonstra que essa “importação” se mostrou pouco ou nada eficaz, sendo que o índice de conciliação, ao invés de subir, vem caindo, conforme atesta o último Relatório Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça.
Na mesma esteira, o ensino voltado aos multiplicadores de métodos consensuais de solução de conflitos, pauta-se quase que exclusivamente na experiência americana, partindo de pressupostos estranhos à nossa cultura, que ignoram totalmente as formas próprias de solução, típicas das comunidades originárias, minoritárias e, muitas vezes marginalizadas, que integram a realidade brasileira.
A forma de solução de conflitos, nessas comunidades, pautada no diálogo, respeito e na construção conjunta da solução, pode, assim, ser considerada “mediação”, mas com características da brasilidade, afastando-se daquela que conhecemos dos livros e da experiência estrangeira.
Nessa linha de raciocínio, um grupo de juristas, capitaneado por Antonio Rodrigues de Freitas e Célia Regina Zapparolli, e do qual faço parte, na esteira da comemoração dos cem anos da “Semana de Arte Moderna”, e do rompimento com o etnocentrismo e o colonialismo, lançou o “Manifesto da Escola Brasileira de Mediação”, em 25 de agosto de 2022, que conta com vários adeptos.
A “Escola Brasileira de Mediação” se orienta pelos princípios da diversidade, do diálogo, do respeito, da restauração do equilíbrio e da reintegração social.
Conclui-se, portanto, que o objetivo do “Manifesto da Escola Brasileira de Mediação” não é lançar um método de solução de conflitos e se apropriar de sua divulgação e “comercialização”, mas sim, permitir o desenvolvimento da “mediação” no Brasil, com o reconhecimento de práticas próprias da nossa cultura, e liberdade de atuação de “mediadores”, e de cátedra, de seus formadores, contribuindo, ao final, para o sistema de resolução de conflitos brasileiro e para a pacificação da sociedade, mas sem intenção de qualquer imposição.
* Valeria Ferioli Lagrasta é Mestre e Doutora em Direito. Publicou recentemente os livros “Métodos Consensuais de Solução de Conflitos no Judiciário: Aprendizagem Evolutiva” (Editora Publique) e “Soluções de Conflitos, Identidade Cultural e sua Interface com a Justiça” – Coleção de Teses e Dissertações Vol. 3 (Apamagis – Editora Cedes)
Folha de São Paulo