O vício não é uma doença? Segunda parte
A definição do vício como uma doença cerebral crônica e recorrente não é um consenso científico, embora predomine. Os especialistas que apoiam esta tese afirmam que o uso frequente de substâncias psicoativas provoca alterações cerebrais em progressão. O cérebro reconfigurado sustenta a compulsão, a consequência torna-se causa.
Dentro do crânio, o lobo frontal deixa de guiar crítica, coerência, e escolha, pois, é sombreado por um agrupamento de neurônios organizados em uma estrutura chamada de núcleo accumbens, um polo causador da sensação de prazer. Nesta etapa, o comportamento é impulsivo, e o raciocínio perde o escopo. Tardiamente, o núcleo accumbens deixa de ser a grande influência, o seu substituto é o corpo estriado dorsal. Então, a busca pelo prazer já não é o guia, a atitude ficou automatizada e é compulsiva. Estes conhecimentos surgiram de experimentos com cobaias e da análise de imagem de cérebros humanos em funcionamento.
Os pesquisadores que contestam esta ideia exercem suas posições de modo a não perdoarem nem a base. O psicólogo Gene Heyman, professor da Universidade de Harvard, por exemplo, critica os estudos de neuroimagem, pois muitos dos participantes rotulados de viciados são na verdade usuários crônicos. Assim, a análise dos dados obtidos, não necessariamente descreve um grupo homogêneo de indivíduos supostamente adoecidos.
Cientistas nos recordam de que a fama dos experimentos dos ratinhos, aqueles que se drogavam até beirarem a morte, enuvia detalhes metodológicos. Isso faz você desatenta leitora, se precipitar em conclusões. Ninguém lhe contou, mas apenas certas linhagens das cobaias dobraram-se à estática autodestrutiva. E, mais importante, os camundongos, quando em ambiente mais natural possível, não seguem o curso tomado por seus pares enjaulados a rigor. Portanto, antes de as cobaias portarem-se como viciadas, há uma situação permissiva.
Em muitos casos, situações, e não uma doença, explicam também o comportamento humano. Muitos veteranos da Guerra do Vietnã abandonaram o vício em heroína sem qualquer intervenção terapêutica. Incentivos financeiros fizeram presidiários pararem de consumir drogas, em uma prática demonstração de que retinham a habilidade de escolher. A recompensa monetária fornecida como alternativa aos entorpecentes reduziu a sedução química. Aceitar uma nova contingência foi um aprendizado.
O aprendizado é favorecido pelo prazer. Esta sensação é uma força vital, adaptativa à vida e também reforça envolvimento, criatividade e bom desempenho. Os prazeres exageradamente intensos e imediatos acesos por substâncias psicoativas favorecem as conexões cerebrais que motivam, e o desenvolver de estratégias para ter com estas novamente. Portanto as drogas têm o apelo necessário para alicerçar um hábito, e a partir da rotina, surge automação.
A automação é o destino de ações repetitivas. Alguns cientistas argumentam que os processos neurais que transformam o comportamento de voluntário para o automático materializam o vício como doença. Outros contra-argumentam ao nos lembrarem de que à medida que a novidade é substituída pela familiaridade, as condutas, em geral, tornam-se mecânicas. Por isso um músico consegue tocar sem olhar para o instrumento, e um motorista experiente é capaz de dirigir o carro enquanto conversa. Logo, não é necessário haver uma doença para que o controle voluntário seja contornado, esta circunstância é uma resposta natural, embora no vício seja desvantajosa e sensível às condições específicas. Para alguns pesquisadores, esta passagem do volitivo para o mecanicismo pode anular decisões sensatas e está presente em tópicos como consumo de pornografia, de fast food, de jogos de azar, na religiosidade fervorosa, no amor romântico.
Há um viés cognitivo denominado desvalorização pelo atraso, este define a nossa tendência em sermos imediatistas, em cedermos aos supostos benefícios do que está logo a seguir, ao passo que desconsiderarmos as recompensas maiores e duráveis obtidas no longo prazo. Os proventos do futuro desaparecem do radar ao decidirmos a favor do instante. Esta falha intrínseca de nossa mente é um exemplo de como nossas respostas surgem à margem de nossas capacidades de escolha, de nossa intenção e como temos dificuldades em inibir um impulso quando estamos frente ao desejo.
Os proponentes da teoria do vício como doença atestam que o vício bloqueia nossas decisões e nossa capacidade de inibir. A moléstia apagaria um “supervisor” cognitivo. Os que discordam argumentam que a desvalorização pelo atraso liquida a sensatez, sem requer uma enfermidade cerebral para acontecer. E pareada com o vício burla os domínios do lobo frontal.
Pessoas viciadas tendem a desejar as drogas quando encontram qualquer item ou situação que os fazem relembrá-las. Pistas mnemônicas ativam sistemas dopaminérgicos cerebrais. A dopamina é essencial para a sobrevivência, por sua ação surge a energia para superar os desafios em obter alimentos, em estabelecer vínculos, em conquistar território. Acúmulo, apostas, maus hábitos alimentares, amor romântico são exemplos de atitudes fomentadas pela ação dopaminérgica. Uma recordação simples e distante pode incitar movimentos de procura por estes itens, graças as ao efeito da dopamina. Neurocientistas demonstraram que a rejeição romântica, afrontada por recordações da paixão, pareia-se biologicamente com o desejo pela cocaína.
A maioria das alternativas ao modelo do vício como doença cerebral compartilha a visão de que as explicações sobre a dependência devem incluir fatores sociais e familiares. Existem evidências de que a automação, a redução da flexibilidade neural, a sensibilização duradoura aos gatilhos ambientais e a tardia dessensibilização à recompensa são características normais do aprendizado de padrões comportamentais motivadores, repetitivos e habituais. Nós humanos somos suscetíveis ao condicionamento irracional, nosso cérebro assim nos faz. As substâncias psicoativas podem encontrar no encéfalo um campo aberto para subordiná-lo ao abuso.
Alguns estudiosos contrários a definição do vício como doença fazem um recuo de suas posições ao refletirem sobre certas pessoas que, mesmo após passarem por mudanças ambientais, receberem suporte adequado e ganharem incentivos, prosseguirão em uso compulsivo de drogas. Teorizam que alguma doença mental preexistente, ou transtorno de personalidade, possa ser a causa do comportamento imutável. Ainda assim, fazem uma concessão ao ponto de vista oposto, e dizem que em certas circunstâncias, o vício pode ser assertivamente interpretado como doença.
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Informação
Folha de São Paulo