Os que disputam lugar no pódio e os que sonham sair das ruas
O artigo a seguir, sob o título “Os Invisíveis Olímpicos“, é de autoria de Danilo Fontenelle, juiz federal. (*)
No último dia 26 de julho, começaram as Olimpíadas. O lema é “Citius, Altius, Fortius”, que em latim significa “Mais Rápido, Mais Alto, Mais Forte.” Esse mote reflete o espírito de superação e excelência que é a essência dos Jogos Olímpicos.
Novos campeões surgirão. Recordes serão quebrados. Os agora melhores serão celebrados e escreverão seus nomes nos registros da história, numa ode ao espírito humano e à perseverança.
Todas as modalidades são fascinantes. É bom ver pessoas que se dedicaram durante anos para uma oportunidade de subir ao pódio. São esforçadas, dedicadas, concentradas e quase obsessivas por uma chance de conseguir reconhecimento.
Mas o que me fascina mesmo são as pessoas que vivem (e nem sempre superam) suas dificuldades e limitações. Não visam nenhum ouro, prata ou bronze, mas apenas viver (ou sobreviver). Lutam para serem pessoas comuns.
Nossa cidade, tão iluminada e festiva, está vendo cada vez mais pessoas pedindo algo para comer nos sinais. Alguém as ensinou a escrever seus pedidos em papelões, e já se tornou comum percorrerem os corredores dos carros com olhares esperançosos de quem está muito longe dos pódios da dignidade.
Existem também as modalidades dos supermercados.
Alguns se sentam do lado de fora, quase ajoelhados, e imploram aos que entram que tragam algo para a família. “Pode ser qualquer coisa”, esclarecem. Outros escolhem perambular por entre as gôndolas, sob o olhar vigilante dos seguranças, e pedem, constrangidos, para passarmos algo nas nossas compras. Um macarrão dourado, um arroz quase prateado, um feijão cor de bronze seriam suas medalhas.
As farmácias também estão sendo frequentadas por aqueles já fora dos jogos profissionais. Até pouco tempo, eram assalariados, mas agora estão contundidos pela vida e atingidos pelo destino. Alguns pedem fraldas para filhos recém-nascidos. Outros sentem dor e nos acenam com receitas impossíveis para sua realidade.
Essas modalidades correspondem aos que conseguem andar, falar e se aproximar. Mas ainda existem outros lutadores que sequer conseguem competir por algo. São os que se deixaram levar pelo doping da bebida e das drogas ou foram abandonados por conta de desequilíbrios mentais. Tidos como desclassificados da vida, vivem no desamparo das calçadas sujas, becos sombrios e colchões úmidos nas praças e no centro da cidade. Não esperam cruzar linhas. Suas faixas de chegada estão apenas até o próximo dia.
Dizem que muitos talentos olímpicos são descobertos quando ainda são crianças. Daí passam uma vida dedicada aos treinos. Recebem alimentação especial, suplementos, acompanhamento médico especializado, apoio psicológico e patrocínio que lhes assegura uma vida acadêmica e profissional após as competições.
Enquanto isso, muitas das nossas crianças estão nas ruas. Algumas vezes, como medalhas dividindo os braços dos pais com papelões. Outras, como troféus exibidos nas portas de supermercados. Umas correm por entre os carros de mãos estendidas. A maioria pula os abusos, dá saltos de esperança, exercita a resistência e supera desprezos, indiferentes à negligência das prioridades sociais e políticas públicas.
E todos, pais e filhos, sonham com o pódio de três refeições diárias, numa casa sem enchentes, ratos ou balas. Seria o Olimpo para eles, na obsessão de deixarem de ser invisíveis. Não querem ser campeões nem reconhecimento. Só querem uma chance de serem pessoas. Comuns mesmo.
(*) O autor é titular da 11ª Vara da Justiça Federal do Ceará. A crônica foi publicada originalmente no jornal “O Povo”, do Ceará.
Folha de São Paulo