Pandemia me fez perceber que exercícios não servem só para emagrecimento
Dizem que o exemplo é fundamental para uma criança desenvolver hábitos como ler ou se exercitar. Na minha família, majoritariamente feminina, vi reinarem o tabaco, o álcool e o auto-ódio. Fazer exercícios físicos ou comer de forma considerada saudável só poderiam ser estratégias para emagrecer.
Eu entendo: coisas horríveis foram ditas à minha mãe por sua avó (que a obrigava a pular corda para perder peso), assim como às minhas primas pela nossa avó. A mensagem ficou clara para elas, que se odeiam até hoje. Eu era uma pessoinha pequena, mas a ideia oferecida pelo meu pai ausente de que o meu valor estava atrelado ao meu corpo foi indiretamente reforçada.
Virei uma adolescente que nunca se divertiu dançando ou jogando bola. Evitava ser vista, ainda mais, me movimentando. Fiz da menstruação munição para matar todas as aulas de educação física. Ponto para as meninas: ganhava duas horas semanais com meus livros, em mundos que não eram meus –graças a Deus me livrava de mim. Estava à salvo dos olhares e podia brincar de ser invisível.
Minhas atividades após a escola eram limitadas, além de propícias para compensar as calorias que eu não tivesse vomitado, subindo e descendo pelas ruas íngremes do bairro quase rural em que vivia. Me desafiava: e se eu der essa volta dez vezes? Fingia, para mim e para os outros, que o objetivo final era chegar à biblioteca. Pegava um novo livro e repetia o caminho mais dez vezes até minha casa. E amanhã outra vez, sob nova desculpa. O after sempre era na balança da farmácia.
Essa foi uma das estratégias que encontrei para me exercitar e a minha motivação para as trocentas subidas e descidas se fortaleceu sob muitas autocríticas e a ilusão de que era uma questão disciplinar. Assim como para a purgação, do que me orgulhava silenciosamente no estilo “o de hoje está pago”. Juro que tentei me movimentar incontáveis vezes, mas sempre acabava imersa numa experiência ansiosa e desgastante, reduzida a culpa e obsessão por otimizar a perda de peso.
Eu tentei: andava de bicicleta desde os quatro anos (e me apegava à lembrança de sentir o vento no meu rosto quando tiramos as rodinhas de apoio inúteis que entortavam e me faziam cair), depois me equilibrava em patins na garagem de casa (e comemorava ficar cada vez mais tempo sobre rodinhas enfileiradas). Quando tinha dez anos, um professor de judô começou a dar aulas gratuitas para os alunos da minha escola. Eu amava aprender coisas que não lembro o nome, mas que consistiam em derrubar os outros no tatame. Em quatro meses emagreci quatro quilos.
Não fosse o peso reduzido, talvez continuasse a me divertir pelo tempo que sobrou. Mas de novo tudo se transformava em emagrecer. Talvez também tivesse avançado a faixa branca, não fosse o primeiro campeonato para o qual o professor nos levaria. Para ir, precisava nos pesar. Eu tinha um peso maior do que o ideal para a idade e tamanho. Subi na balança e pedi baixinho: não conta para ninguém?
Em seguida assisti um adulto me diminuir porque eu era “gorda demais”. Diferente do meu pai, que me falava para fazer dieta desde os quatro, aquele homem cantarolava para todos na academia: a Ana Carolina pesa 52 quilo-o-o-os. Fui embora e nunca mais ouvi falar em judô. É triste a certeza de que outras crianças deixaram a luta com mais ódio de seus corpos do que chegaram, porque o grupo minguou. O que era para ser um projeto bacana para crianças carentes virou um espaço para humilhação.
Daí para frente escorreguei ladeira abaixo. Só me encontrei com os exercícios físicos de novo em 2020. Em meio ao surto dos padeiros e artesãos amadores da pandemia, fui da turma de exercícios guiados por professores no YouTube. Cada vez que a ansiedade do fim do mundo me fazia passar mal, trocava de roupa e ia para a frente da televisão.
Burpee, agachamento, alongamento, ioga para diminuir a tensão. O movimento possível. Dez minutos. O suficiente para sentir os efeitos da cabeça em desaceleração. De repente meia hora, quarenta voltas no relógio. Pela primeira vez acessei o prazer em me exercitar. Fiquei viciada em tentar novas coisas, superar o meu tempo na corrida, subir as escadas do quintal, ter mais força, equilíbrio e até alguma coordenação, e principalmente, em sentir a calmaria se derramar por dentro.
Quando assimilei a descoberta, pensei que seria esse o sabor da Bebida Púrpura, descrita em “O Dia do Curinga“, de Jostein Gaarder (um dos meus preferidos nas aulas de educação física não feitas): seu gosto podia ser sentido no corpo inteiro.
Quando dei por mim, minhas roupas começaram a ficar largas. Perdi muitos quilos. Minha barriga começou a endurecer. Foi sem querer. Fiquei confusa: pela primeira vez, não estava tentando emagrecer.
Para não cair de novo na obsessão, precisei de uma estratégia: estabeleci como regra a diversão. Só me exercito se for para me sentir bem. Se for porque acordei com aversão a mim mesma, faço um chá, deito na cama, vejo tevê. Há quatro anos, assim vamos, eu e meu corpo, mexendo um pouco sem nos deixar cair em tentação. Vitória das meninas!
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Informação
Folha de São Paulo