Política

Juiz vota contra confissão obtida sob tortura pela PM paulista

O desembargador Marcelo Semer, da 13ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, foi voto vencido ao defender a absolvição de um traficante por entender que é ilegal a prova obtida sob tortura.

“Não há qualquer margem de tolerância que permita a admissão de prova obtida mediante violência policial. Ao contrário, a conduta é considerada crime em todos os seus níveis de gravidade”, afirmou em declaração de voto. (*)

Semer examinou os registros das câmeras dos policiais militares Willian Barbosa Pereira dos Santos e Márcio José Carniel Júnior, únicas testemunhas arroladas em processo sobre as circunstâncias da prisão do traficante Iury Mateus Correa Alves, em Itapevi, município localizado na microrregião de Osasco, em março de 2023.

“Os vídeos das câmeras possuem diversas informações que apontam a ocorrência de violência policial. Tais agressões incluem socos e tapas na cabeça e rosto do réu, empurrões que o levaram ao chão, enforcamento que durou ao menos um minuto e segurar o réu com a camisa levantada para que fosse chicoteado por um terceiro”, Semer registrou nos autos.

“As imagens mostram com clareza que Willian encontrou o réu deitado em uma valeta. Então, apontou a arma para o réu, que se entregou sem resistência, colocando as mãos na cabeça e obedecendo os policiais a todo momento”, escreveu Semer em seu voto.

A filmagem capta outros dois PMs, que não foram ouvidos na Justiça. A Polícia Militar enviou mídias sem áudio, exceto o trecho da confissão. Imagens foram apagadas.

Consta nos autos que Márcio bloqueou a câmera enquanto Willian dava murros no réu. Iury declarou em juízo que os policiais falaram: “desliga as câmeras“.

Inquérito militar

A Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo enviou a seguinte nota:

“O caso foi registrado pela Delegacia de Itapevi, onde o suspeito foi preso em flagrante por tráfico de drogas. O inquérito policial referente aos fatos foi relatado em março do ano passado.

O Inquérito Policial Militar, encaminhado à Justiça e atualmente em andamento no Tribunal de Justiça Militar, apontou indícios de transgressão. Como resultado, o 20º Batalhão de Polícia Militar Metropolitano (BPM/M) instaurou um Procedimento Disciplinar para apurar as acusações.”

A assessoria de Imprensa do TJ-SP informou que o tribunal não comenta questões jurisdicionais.

Um ano depois da Operação Escudo, que resultou na morte de 28 pessoas no litoral paulista depois do assassinato de um policial, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) continua criticado pela letalidade da Polícia Militar.

Preocupada com os rumos da política de segurança pública na gestão do secretário Guilherme Derrite, a OAB-SP criou uma comissão especial para tentar refrear os retrocessos na ação da Polícia Militar.

Iury foi condenado a 7 anos e 6 meses de reclusão por tráfico. A punição foi elevada em razão dos antecedentes do réu e do volume de drogas apreendidas.

O réu já tinha sido preso antes. Estava “de saidinha” e praticara novo crime enquanto cumpria a pena.

Ele foi flagrado num ponto de venda de drogas em Itapevi com 65 invólucros plásticos contendo maconha; 260 invólucros de cocaína e 669, de crack.

“O réu reiterou que foi agredido e afirmou que foi ameaçado de ser mais agredido se não confessasse, alegando que ficou com medo de morrer. Os indícios são corroborados pelo laudo de corpo de delito do réu”, escreveu o juiz.

A condenação original foi mantida por 2×1 na apelação. A Defensoria Pública entrou com recurso [embargos infringentes]. Após manifestação da Procuradoria de Justiça pela absolvição, por ilegalidade das provas, a decisão condenatória foi mantida por 3×2. Ficaram vencidos os desembargadores Marcelo Gordo e Marcelo Semer.

Ainda cabe recurso da decisão no Superior Tribunal de Justiça.

Truculência reconhecida

O relator dos embargos infringentes, desembargador Augusto de Siqueira, admitiu que, “o réu foi abordado de forma brusca, ríspida e enérgica, o que não foge à regra nas ocorrências desse jaez, insista-se. Os policiais não podem agir de forma branda ou acomodada, sob risco pessoal, físico, concreto.”

“Não se ignora a truculência, com três pancadas em direção à cabeça do réu, atos que, porquanto ocorridos segundos antes da localização da droga, merecem maior atenção na análise de eventual mácula à obtenção da prova da materialidade”.

Segundo Siqueira, as lesões constantes do laudo “não são fruto da atuação policial inicial e, sim, possivelmente, de atos posteriores à apreensão da sacola contendo entorpecentes, não contaminada, portanto. A situação teria o condão de macular tão somente a admissão posterior de traficância, feita em via pública”.

O procurador de Justiça que atuou no julgamento disse que “não se discute mais a abordagem, reconhecida como válida, mas a possível tortura perpetrada pelos policiais que todavia, não influenciou o desdobramento probatório”.

Segundo Semer, “é responsabilidade do Estado brasileiro prevenir e punir a tortura no âmbito de sua jurisdição, o que inclui a não-admissão de prova obtida mediante tortura nos processos judiciais”.

“É responsabilidade dos juízes garantir a integridade corporal dos réus contra a violência estatal”, concluiu o magistrado.

Mesmo sem anular a prova por violência policial, a 13ª Câmara determinou o envio das principais peças ao Ministério Público diante da evidência de prática de crime (art. 40, CPP).

Marcelo Semer trabalhou por mais de vinte anos em varas criminais. É membro e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia. Foi advogado, professor e jornalista. É autor de livros sobre o papel do magistrado e a questão do encarceramento.

(*) Processo nº 1500621-76.2023.8.26.0628

Folha de São Paulo

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