Saúde

A década de ouro da terapia psicodélica na Argentina

A argentina Susana Garcia, hoje com 84 anos, vive em Fortaleza. Quando tinha 18 e ainda morava em Buenos Aires, foi resgatada do fundo de um poço em que havia sido atirada por transtornos mentais. O pai estava morrendo de câncer, e ela, com anorexia grave e pesando 38 quilos, renasceu para a vida com LSD.

Melhor dizendo, não (só) com a substância modificadora da consciência, mas com o tratamento em que o médico Alberto Fontana buscava ajuda de drogas psicodélicas como o ácido lisérgico, a psilocibina e a mescalina para facilitar acesso a traumas e pulsões recalcadas. Garcia chegou a Fontana por sugestão da irmã, psicóloga, que sabia da fama adquirida pelo psicoterapeuta e seus métodos.

O psicanalista não foi o único a se valer de psicodélicos em psicoterapia na Argentina, recurso que esteve próximo da consagração oficial na profissão. Basta mencionar que uma das figuras mais destacadas do grupo defensor de psicodélicos, Luisa Gambier de Álvarez de Toledo, foi em 1956-1957 presidente da Associação Psicanalítica Argentina (APA), que havia sido fundada em 1942.

Álvarez foi personagem ímpar. Além de ser a primeira mulher a presidir a APA, advogava que os analistas usassem eles próprios substâncias psicodélicas, para autoconhecimento e para vivenciar o que propiciavam a seus pacientes. Em 1960 publicou o artigo “Ayahuasca” na Revista de Psicoanálisis, em que narra o que experimentou em duas cerimônias xamânicas com o chá na selva peruana e as compara com o contexto psicanalítico.

“As fantasias que surgem sob o efeito da droga alucinógena, no tratamento analítico, perdem sua ‘realidade’ à medida que são interpretadas, obtendo-se maior conexão e adaptação ao mundo externo”, escreve. “Em troca, o feiticeiro parece que adquire, reforça e mantém com a utilização da droga uma fantasia onipotente, que apoia e gratifica.”

Tomei ciência dessa história fascinante por meio de dois artigos. O primeiro tem autoria da francesa Zoë Dubus, historiadora da medicina que escreveu para o portal Chacruna o texto “LSD e Ayahuasca na Argentina: O trabalho pioneiro de uma psicanalista nos anos 1950” (em inglês, aqui, e em espanhol, aqui).

O outro artigo, de Rodolfo Olivieri e Luís Fernando Tófoli, saiu no International Journal of Drug Policy como “Psicanálise e Psicodélicos: A história censurada na Argentina”. O título, claro, já dá o spoiler –a iniciativa inovadora não rendeu frutos duradouros.

Antes de mais nada, cabe destacar que o caso argentino não foi uma ave rara. Nas décadas de 1950 e 1960 o laboratório suíço Sandoz enviava LSD, sob o nome comercial Delysid, para médicos que quisessem fazer uso experimental da droga criada em 1938 por seu químico Albert Hofmann. Muitos se dedicaram a isso –nos EUA, no Canadá, na Europa, mesmo no Brasil, notoriamente, pelo psiquiatra Murilo Pereira Gomes– até o final dos anos 1960, quando a droga caiu nas graças da contracultura e terminou proscrita.

Em Buenos Aires, o casamento de psicanálise com psicodélicos não durou mais que uma década. Após presidir a APA, Álvarez foi ostracizada por seus pares conservadores, que viam nos psicodélicos um flanco aberto para ataques à profissão.

Em 1961, a Revista de Psicoanálisis publicou anúncio de página inteira alertando que “desvios ligados ao uso de drogas –LSD, mescalina, benzedrina, tranquilizantes, cortisona etc.– não devem ser considerados tratamentos psicanalíticos”, informa Olivieri em sua dissertação de mestrado. A defesa foi em maio deste ano, mas o texto “Forças Estranhas: Uma colaboração psicanalítica ao efeito visual da ayahuasca” ainda não está disponível na rede.

Naquele momento, psicanalistas argentinos e de outras partes buscavam diferenciar sua atividade daquela exercida por psiquiatras, que por sua vez se encaminhavam para uma hegemonia farmacológica. Transtornos de humor, desse segundo ponto de vista, seriam produto de desequilíbrios bioquímicos no cérebro e deveriam ser tratados com remédios, enquanto a ortodoxia analítica favorecia a cura pela palavra (com um pequeno reforço, vá lá).

Hoje, quando o Renascimento Psicodélico dos anos 2000 sofre enorme abalo com a rejeição pela FDA da psicoterapia com MDMA para transtorno de estresse pós-traumático, caminha-se para dissociação similar. Nem se tratava de combinar psicodélicos com psicanálise, e sim com técnicas psicoterapêuticas menos controversas, mas após o fiasco investidores e pesquisadores preferem minimizar o tratamento psicológico e enfatizar efeitos bioquímicos como a neuroplasticidade.

Álvarez, Fontana e seus colegas psicodélicos sucumbiram nesse desvão. Deixaram a APA, mas seguiram com seus tratamentos, que iam de doses mínimas (meio micrograma por quilo de peso) a doses cheias de LSD, ou equivalentes com outras substâncias. A dosagem, ou “sessão combinada”, só acontecia uns dois meses depois de iniciada a terapia, com a relação analisado/analista já bem desenvolvida.

Outra inovação foi o uso dos psicodélicos em sessões de grupo, com técnicas de psicodrama. Susana Garcia conta que as pílulas eram dadas por volta e 20h30-21h aos pacientes reunidos, que passavam a noite toda atuando com os terapeutas, até 4h ou 5h, quando recebiam medicamentos para interromper o efeito lisérgico.

Dormiam então até por volta de meio-dia, na clínica, e quando acordavam lhes ofereciam comida, amorosamente”. Os que enfrentassem dificuldades emocionais ficavam para uma sessão individual com o analista, e os outros iam para suas casas.

Fontana conta em detalhes a metodologia empregada no livro “Psicoterapia com LSD e Outros Alucinógenos”, de 1965, que teve edição brasileira quatro anos depois (Mestre Jou, 1969), com tradução do poeta e ensaísta Jamil Almansur Haddad. Ao todo, trataram em dez anos 1.106 pacientes, mas no livro apresentam alguns dados só sobre os 500 que ainda seguiam na clínica, 83% com idade entre 18 e 35 anos, na maioria (58%) mulheres.

Antes desse grupo, outros médicos usaram LSD e similares, como o pioneiro Enrique Pichon-Rivière. Alberto Tallaferro, que havia estudado com Wilhelm Reich nos EUA em 1952 e em 1956 publicou o volume “Mescalina e LSD 25: Experiências, Valor Terapêutico em Psiquiatria”, descreve na obra bons resultados obtidos em 1.117 sessões psicodélicas.

O grupo de Fontana põe ênfase na transferência (projeção de afetos do analisado no analista) e na influência dos psicodélicos sobre esse pilar interpretativo do tratamento psicanalítico. Notavelmente, ele assinala que o efeito da droga se dá sobre os dois polos da relação: “Quando o psicoterapeuta propõe a sessão combinada, perde diante do paciente a sua onipotência, que passa então à droga”.

“O terapeuta, neste momento, deve resignar-se, compreender e interpretar o deslocamento para o medicamento da magia que antes havia sido posta nele. Dizemos resignar-se porque contratransferencialmente o médico sente uma sensação de ser despojado de algo que o protegia e, se não o admite e interpreta, pode reagir com agressão e temor.”

É de questionar o quanto pode ter havido de temor na agressiva rejeição da psicoterapia assistida por psicodélicos pelo estamento biomédico, de que a decisão de agosto da FDA oferece exemplo acabado. Não é fácil resignar-se com a perda de uma assimetria que tanto poder tira do paciente para monopólio do médico, ainda que em aparência todo efeito terapêutico seja atribuído à droga.

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Psicodélicos ainda são terapias experimentais e, certamente, não constituem solução para todos os transtornos psíquicos, nem devem ser objeto de automedicação. Fale com seu terapeuta ou médico antes de se aventurar na área.

Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, procure meu livro “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira”.

Não deixe de ver também as reportagens da série “A Ressurreição da Jurema”:

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/reporter-conta-experiencia-de-inalar-dmt-psicodelico-em-teste-contra-depressao.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/da-caatinga-ao-laboratorio-cientistas-investigam-efeito-antidepressivo-de-psicodelico.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/cultos-com-alucinogeno-da-jurema-florescem-no-nordeste.shtml

Informação

Folha de São Paulo

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