Política

A Venezuela não é aqui

Nos oito anos em que exerceu a Presidência, Fernando Henrique Cardoso nunca foi criticado por manter relações cordiais com seu homólogo venezuelano Hugo Chávez. FHC gosta de contar episódios jocosos que demonstram que os dois mandatários se davam muito bem, para além dos protocolos exigidos pelos cargos que ocupavam —mesmo que já então não fosse difícil prever para onde o populismo chavista conduziria Caracas.

A diplomacia presidencial de Cardoso seguia pelos trilhos tradicionais da política exterior brasileira para a América do Sul: boas relações com os vizinhos; não interferência nos assuntos internos de cada qual; busca de convergências sobre questões regionais. Isso não impedia que o ocupante do Planalto tivesse presença internacional ativa, projetando o país como uma grande nação democrática e abrindo caminho para o pleito brasileiro por reconhecimento internacional.

Por outro lado, a ação externa do país não era tema relevante no debate político interno: o assunto interessava apenas a especialistas, empresas internacionalizadas e militantes de causas transnacionais, como os ambientalistas e os defensores dos direitos humanos.

Foi ao longo da crise política dos anos 2010 que alguns assuntos de política externa se tornaram divisores de posições no embate doméstico. No governo Dilma, as forças de oposição —em particular redes e organizações de direita radical— transformaram a Venezuela e, em menor escala, Cuba em emblemas dos riscos que a permanência do PT no comando federal poderia acarretar. Assim, nasceu a fantasia de que o Brasil, conduzido pela centro-esquerda moderada, poderia mergulhar no caos, com um governo autoritário e, pior, dominado pelo “comunismo ateu”: enfim, na Venezuela dos pesadelos do paranóico Olavo de Carvalho e de seus órfãos. E, hoje, até de candidatos a prefeito se exige posição sobre a ditadura no país vizinho!

Não há dúvida de que Chávez e seu sucessor, Nicolás Maduro, transformaram a imperfeita democracia venezuelana em um regime autocrático que rouba eleição e persegue e prende opositores —sendo responsável por uma catástrofe social e a consequente migração em massa de seus cidadãos para países vizinhos. Tampouco é difícil negar que lideranças petistas tardaram a entender a natureza do chavismo —e algumas ainda nem o fizeram.

Muito menos se pode subestimar o desgaste à imagem externa do Brasil acarretado por uma política bilateral ambígua que parece superdimensionar o papel que o país é capaz de desempenhar no encaminhamento de uma solução positiva para a crise aberta pela fraude eleitoral que garante a permanência de Maduro no poder.

Mas nada autoriza afirmar que equívocos da política exterior testemunhariam falta de compromisso de Lula e do PT com a democracia no país —não é possível citar uma só iniciativa que a confirme. Muito menos se pode dizer que nosso sistema democrático, com freios e contrapesos, esteja ameaçado pela possibilidade de um colapso à venezuelana.

Numa canção famosa, Caetano Veloso, pensando na situação dos negros brasileiros, versejou que “o Haiti é aqui”.

Pode ser, mas a Venezuela definitivamente não é.

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Folha de São Paulo

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