Saúde

Entre o Instagram e o Guia Michelin: o que é apreciar comida hoje?

Não é de hoje que o universo das redes sociais vem mudando o comportamento das pessoas. Vivenciar o prazer de ser visto, ostentar e falsear uma vida de luxo e felicidade que muitas vezes é meramente virtual se tornou um hábito (ou uma fuga) de milhões de pessoas pelo planeta. E, claro, essa história influencia até como as pessoas se alimentam e apreciam aquilo que têm a oportunidade de comer.

Mais: isso está mexendo até com o mundo da gastronomia? Bem, além de cirurgião e pesquisador na área de obesidade, também me aventuro entre bons restaurantes.

O fato é que o universo da gastronomia é mágico desde os seus primórdios. Uma das coisas que motiva o ser humano a seguir em frente é a comida. Com a descoberta do fogo e dos métodos de cozimento, passamos a desfrutar de itens antes inimagináveis – pense em comer um bife ou uma batata sem cozinhá-los primeiro – e tornamos diversos alimentos mais palatáveis, limpos e isentos de micróbios.

Passados centenas de milhares de anos, o homem se viu com uma variedade infinita de combinações e sabores. Surge a arte da gastronomia.

A magia de misturar ingredientes, criar receitas e acertar o ponto, como se fosse uma espécie de alquimia, propicia, a nossos órgão sensoriais, sensações únicas. Não é à toa que alguns chefs são celebrados como grandes artistas.

O amor das pessoas que se dedicam a essa causa envolve não só o cuidado com o restaurante – as panelas, os talheres, toalhas e louças – mas também uma verdadeira dinastia de indivíduos que, da produção da comida no campo ao momento de entregá-la à mesa, trabalha em prol de uma arte que alimenta o corpo e a alma.

Um chef estrelado não busca só o fator financeiro – isso vem quase naturalmente. Ele se importa com a sensação que vai despertar no cliente. Daí vem o reconhecimento.

Criar, nesse universo de possibilidades, algo diferente e de extremo sabor denota muito tempo, provas, inovações e pesquisas. São caçados ingredientes locais, frescos e de sabor inigualáveis. Prestigia-se, inúmeras vezes, a cultura regional.

Avaliadores, dos mais qualificados, exploram secretamente esses ambientes e transformam um imenso trabalho de garimpagem em estrelas – eis o famoso Guia Michelin. Durante os últimos 20 anos, percorri e tive prazer de conhecer e provar centenas desses restaurantes ao redor do mundo e posso dizer que a sensação é única em cada um deles.

Mas um estranho movimento vem ganhando força na última década: a ideia de somente fotografar os pratos para postar nas redes, sem apreciá-los de fato. Não importam o sabor, o cheiro, a apreciação, o respeito. Importam a montagem, a luz, o nome do restaurante.

A maior parte das mesas tem sido ocupadas por pessoas que buscam tirar fotos e compartilhá-las instantaneamente nas mídias sociais, marcando o local e divulgando seu status. Antigamente, reservar uma mesa num restaurante de alta gastronomia significava entrar numa lista de meses de espera. Hoje é questão de dias ou horas… O motivo? Muitos dos verdadeiros apreciadores dessas obras de arte se cansaram.

Certa vez, estava almoçando em um famoso restaurante na Toscana e, em um momento de distração da atendente, um casal entrou, se sentou em uma das mesas e ficou fazendo fotos e poses ali. Ao perceber, a recepcionista foi até eles e perguntou se tinham reserva. Era óbvio que não. E eles foram embora mais felizes do que se tivessem almoçado uma iguaria. Para eles, o mais importante era fazer a selfie e o post. 

Dentro das redes sociais, eles estiveram lá e é isso que vale: mentira com foto tem mais sabor do que um prato pensado e produzido por um grande chef. A imagem está vencendo o aroma e o paladar. Anos de trabalho por um prato refinado são desvalorizados assim.

Não é por menos que há um movimento em que os apreciadores da boa cozinha, esses que preferem comer sem o celular à mão, têm procurado cada vez mais restaurantes locais e isolados, sem ambiente para fotos no Instagram ou mesmo estrelas Michelin. Parecem ser os únicos lugares em que podemos preservar a arte de apreciar pratos fantásticos.

E essa é apenas uma das facetas dessa tendência alimentada pelas redes sociais. Quando não prestamos atenção àquilo que comemos, também perdemos a oportunidade de nutrir o nosso corpo e ficamos mais propensos a exageros. Mas esse é um assunto para uma próxima crônica…

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